CONFISSÕES
Cresci num colégio de freiras. De tempos em tempos havia missa no salão do colégio. O fundo giratório do palco transformava-se em altar. Um dia antes da missa, o padre da paróquia mais próxima vinha ouvir a confissão dos alunos. Pelo que eu confessava ao padre, imagino a inocência das confissões que esse padre ouvia, o dia todinho. Tentava manipular o padre: Cometi todos os pecados capitais e fui contra todos os dez mandamentos.
Pronto, rápido e prático. O padre, paciente, me dizia: como alguem com doze anos já pode ter feito tudo isso, minha filha? – Pode não? Bom, então o senhor diminui disso o que acha que eu não fiz e passa a penitência… O padre tentava corrigir: confesse direito, estou aqui para ouvir. – E eu vou inventar pecado, padre?
Ainda que avessa aos sacramentos, mantive a prática deles até o final dos estudos. Nunca confessando realmente, até que me afastei da igreja, depois que me casei. Tambem nunca aceitei o fato de contar meus erros e dúvidas a alguem, como forma de bem estar. Havia coleções de esqueletos nos armários. E de mais a mais a outra pessoa poderia ser tão ou mais falha do que eu, portanto…Imagine meus pecados, eu digo que os cometi e estamos conversados.
Sacramentos à parte, o negócio era fugir da culpa e só. Mas quando a culpa assola, mas vem mesmo com tudo, com a quela vontade de cortar os pulsos, a única coisa que salva é falar. Falar, falar, falar, deixar sair tudo o que incomoda, entope as veias e azeda a vida. O problema é pensar: desabafo aqui, amanhã está entre nós e a torcida do Corínthians. Pior que isso: com o julgamento de toda essa gente, todos olhando com cara de reprovação, a cara da minha Dinda quando me pegava roubando doce.
O medo da reprovação tinha a cara da minha culpa vista no espelho. Estamos tão absolutamente sós, nem se justifica temer o outro. Cada um supondo alguma coisa. Cada um sentindo a situação de acordo com sua ótica, suas vivências, seu modo de experimentar a vida… Tão diferentes de como eu vejo… Mas ainda não sabia disso. Ainda muito me feria o julgamento alheio, até que a ferida da culpa ficou maior e maior. Procurei um padre.
Quem entrou na igreja foi aquela menininha de 12 anos, mas quem acabou falando co o padre foi uma mulher sofrida pedindo desculpas por existir e fazer tanta bobagem de uma vez só. E que saiu de lá leve como se tivesse 12 anos e olhasse para os lados pronta pra assaltar a jabuticabeira do colégio.Como criança pequena que vai recolhendo pequenas lembranças do mundo que está conhecendo e entregando todas elas nas mãos da mãe para que ela guarde suas preciosidades: uma pedra, um dente de leão, um guardanapo de papel, uma balinha…Assim eu deixei nas mãos do Criador minhas miudezas, minha pequenez, minhas vaidades, que fui recolhendo e estavam por demais incômodas para carregar.
O que me restou daquilo foi unicamente uma certeza: O bem de falar meus defeitos a alguem fazia com que eu conseguisse vê-los e vendo, não voltar a alimentá-los. Enxergar minhas falhas era o que derrubava os muros que havia construído à minha volta, pensando em me defender, mas que se tornaram prisões solitárias. Não precisaria, naturalmente que eu o dissesse a um clérigo. Isso foi por ter aprendido assim, na infância. Mas precisaria ser feito diante de outro ser humano. Alguém com a mesma capacidade que eu tinha de cometer erros e revisá-los depois; que poderia até me julgar ou fazer caretas, porque, na verdade o meu próprio julgamento havia se tornado menos duro para comigo. Nesta vida eu talvez nunca passe dos doze anos.