AMIGO INCONDICIONAL
Ele era o tipo de pessoa que nunca passaria despercebido onde quer que fosse. Não só pela sua aparência, muito alto, magro, ruivo, e um par de olhos inquisitivo e inteligente. O jeito de falar um pouco afetado, mas o que marcava mesmo eram suas palavras duras, quase cortantes. Rebeldia misturada com deboche. Transparecia sua homossexualidade e também nunca se importou em proclamar aos quatro ventos que era um dependente químico.
-Bah, tem certeza que vai trazer ele aqui? Esse cara é muito maluco…
Eu tinha todos os motivos pra me afastar dele. Me davam todas as razões plausíveis para nunca ficar perto dele. Sei lá por que, eu gostava do meu amigo a troco de nada. Absolutamente nada. Admirava nele o que pra todo mundo era defeito.
Acho que as grandes amizades são assim. Feitas únicamente de admiração e vontade de estar junto. Mais nada. Autêntico treino para o amor incondicional que a gente teima em conquistar, sei lá pra quê. Deve ser a mania de perseguir a perfeição. Sempre amamos com alguma intenção, alguma troca, escondida nas dobras da alma. A gente deseja muito. Deseja tudo. Amor incondicional está muito acima de qualquer tipo de desejo. Ama-se por amar, apenas. Numa relação afetiva/sexual é quase impossível. Mas na amizade, é possível vislumbrar isso. Gostar de estar junto e nem considerar o porquê disso.
Aos poucos eu me via surpresa com a capacidade que meu amigo tinha de ferir a si mesmo. Confrontava as pessoas com seu comportamento escandaloso, pra ser ferido. Um dia me confidenciou:
-Eu sou uma aberração. Sou um homem que gosta de homens.
Fiquei chocada com isso. Como alguem pode se afirmar uma aberração? O preconceito começa na própria pessoa que é alvo de preconceito. Um outro dia me disse também: Preferia ser chamado de maconheiro, do que de veado. Abracei a droga pra que meus pais tivessem mais motivos de se envergonhar de mim, que não fossem só minha sexualidade.
Mas eu continuava gostando dele a troca de nada. E aos poucos ele ia ficando à vontade ao meu lado. Um dia resolveu dar um tempo em tudo, de verdade. Abraçou a recuperação. Até se enxergar melhor, e…
-Bah, esse negocio de ficar careta é um saco, não leva a nada. Tô indo pra boca, cansei. Eu sou sem futuro mesmo e não tenho que provar nada pra ninguem. Ei, você está chorando porque? Vou pra boca mesmo…
-Se pudesse eu ia com você. Tem toda a razão. Ficar nessa é um saco e não leva a nada mesmo.
Eu tinha brigado com o Manoel, um namorado que estava durando até um tempinho. Quase casamos. Meu ruivinho mudou o discurso.
-Que papo é ésse? Tá maluca? Você fez tudo pra salvar minha vida agora vem me dizer um negócio desse? Eu posso morrer, você não!
Notei pelo identificador de chamadas que ele estava vindo pra minha casa. Ligava de um orelhão a cada 15 minutos. Os números indicavam o caminho que ele estava fazendo. Quando chegou no meu portão estava bravo, meio espavorido:
- Você me decepcionou! Você não vê que sozinho eu não consigo?
Aquela noite dormi com a cabeça no colo do meu amigo. Nenhuma palavra. Só um silêncio que resumia tudo: Estamos juntos, e isto basta.
Eu vi o crescimento do meu amigo querido. O novo homem em que se transformou. A alegria de ter encontrado o amor de sua vida, com o mesmo nome dele. Lindos, os dois. Ele já não era uma aberração a seus próprios olhos. Nessa jornada, ele me estendeu a mão várias vezes. E aos meus filhos. Como valeu a pena amá-lo a troco de nada… A vida ficou mais leve e mais feliz.
Essa semana ele foi morar com Deus. Ficou a saudade, de tantas coisas boas, tanta risada, tantas histórias… Já deve ter chegado dando close no céu. Definitivamente, ele nunca passaria despercebido onde quer que estivesse.